sexta-feira, 3 de maio de 2024

Carta do Enkidu

 Se alguém estiver lendo isso, saiba que eu sinto muito. Não era para ser assim.

Meu nome de origem me é desconhecido, mas sei que algum dia o possuí. Alguma vida pregressa também por certo tive, uma vez que existo, e outros existem e tem forma, e se recordam de coisas que com alguma parcialidade ocorreram. Portanto venho me apresentar com o nome que se me é dado nessa existência atual, seja ela qual for. Me chamo Enkidu. 

Um dia, da inconsciência e do nada, subitamente despertei. Era jovem meu espírito e era jovem o mundo, então. Mares se revolviam misturados com desertos malformados, rascunhos de montanhas proviam picos estrelados coroados com neve no horizonte. Levantei-me, achava-me nu. O vento frio vinha de algum lugar a leste, senti, embora os conceitos de direções não tivessem sido ensinados por alguém ou algo. Sinais, digo eu hoje ao me lembrar, sinais de uma existência anterior. Andei nu e sozinho pelo que me pareceram eras, milênios, enquanto o dia vinha, com três flamejantes orbes, em um céu de um púrpura rico e aveludado salpicado por milhares de pontos de luz. 

Atravessei o deserto e as montanhas, seguidas por luxuriantes florestas, verdes e úmidas, cheias de cogumelos de diferentes cores, plantas de toda sorte e tamanho, grandes árvores retorcidas, gigantes centenárias, grandes como montanhas, lares para uma infinidade de animais exóticos, e mirradas e esquálidas árvores brancas, belas e envenenadas, onde grandes escorpiões pintados se reuniam para caçar uma presa qualquer, em grupo.

Enquanto andava, questionava a mim mesmo sobre o motivo e a razão de estar andando em alguma direção e não parado ou simplesmente repousando onde despertei, uma vez que não havia motivação de nenhum tipo em seguir por este ou aquele caminho. Deduzi, lembro-me, que decerto que algo ou alguém deveria estar no fim da jornada.

Saliento que, exponho meus sentimentos e pensamentos quando experimentei a existência pela primeira vez apenas para a compreensão do leitor conquanto as situações que me trouxeram a esta missiva. Portanto, leitor, se meus pensamentos lhe parecem ingênuos e assustadores, peço-lhe que continue esta leitura normalmente, e congratule a si mesmo por ter pulado uma torpe armadilha, deitado junto às mandibulas de um leão faminto e desviado de seu bote. 

Porém, caso esta leitura lhe cause deslumbramento, felicidade ou a mais remota vontade de experienciar o que aqui descrevo, leitor, rogo a ti, abandone-me a falar sozinho! Queime estes papéis, corra e abrace os seus! Não há que se alimentar a fera e cair no seu canto de sereia, com eu e tantos outros antes de ti! Vá, leitor, seja livre. Prossigamos. 

O ocaso e a aurora se misturavam em um, serpenteando cores no céu com uma proficiência magnífica, quando divisei uma construção ao longo do horizonte. Longas e altas torres de pedra preta, cascatas douradas, pátios onde arabescos de cenas grotescas eram retradados com seres angelicais adorando coisas saídas da noite, nunca esquecerei, enquanto se houver memórias em meu ser, do aspecto colossal e divino, gargantuesco e disforme de Ashgabad, a cidade dos Antigos Profetas, onde os Mil Olhos colocaram pela primeira vez a praga dançante na terra, onde as crianças de Salitha foram todas assassinadas no sinistro ritual para trazer o Grande Abutre em sua forma novamente. Ashgabad, a eterna! Ashgabad, a Grande! Ashgabad, a desgraçada, a terra dos malditos, a pútrida!

Andei e adentrei os portões ladeados por esfinges douradas, e enquanto suas ruas estavam vazias e desgovernadas, sentia olhos, muitos olhos flamejando em minha direção de dentro de casas, covis e lugares escuros. Rosnados, grunhidos e gritos guturais acompanhavam minha passagem, e cantos, louvores a antigos deuses escuros ressoavam nas paredes em volta, cantados em diferentes línguas, de diferentes povos, todos já mortos e esquecidos muito tempo atrás. 

Cadáveres, em diferentes estados de putrefação, corpos de diferentes animais, caídos aqui e ali, juntavam-se ao coro, suas bocas mortas mexendo-se enquanto expeliam volumosas quantidades de fluído, além de bandos de gordas moscas esverdeadas, que voavam para dentro e fora de seus corpos enquanto eles falavam. Somente seus olhos brilhavam com vida.

Subi por estradas tortuosas, vielas ladeadas de lojas com estranhos simbolos, vendendo coisas mais estranhas, insondadas até mesmo pelos mais sábios entre os mortais. Cabeças sem corpos e corpos sem cabeças, potes com guirlandas brilhantes, roupas de todo tipo, cor e estilo, e até rostos humanos vazios de conteúdos, sacos de pele amorfos pendiam de ganchos nas paredes. Vazio. Tudo vazio. 

Depois de muito me deslocar, cheguei ao que era a real entrada do edificio mais envenenado, amaldiçoado e cruel de todas as dimensões: Sitrihne, o Palácio dos Mais Velhos.

O tamanho da construção é simplesmente inconcebível. A maior das construções humanas pode ser posta dez vezes verticalmente e ainda sobraria mais espaço entre elas e o teto do que posso descrever. Seus salões são antigos, estranhos e magníficos, decorados com arabescos, candelabros e piso de uma cor negra brilhante, e paredes em vermelho-sangue, tão vivo que parece pingar. Andei, andei e andei.

Das maravilhas e horrores que vi, pouco direi, uma vez que em meus milhões de anos de existência, de fato nunca compreeendi aqueles mistérios, ou que formas se mantém dentro daquele harém infernal. Sinto que enlouqueci e andei por dias, meses, anos. Ora, dormir e comer provavelmente haviam sido necessidades que eu havia possuido, em algum momento, ou havia sonhado que as tinha?

Mas isto contarei: em um dos quartos, haviam um rei. Ricas eram suas roupas e rica era sua fronte. Régias pérolas pesavam em suas mãos, com esmeraldas e diamantes em cascata em seus cabelos brancos como a neve. A barba, tambem alva, quase tocava o chão. Apoiado em seu colo, estava uma espada, grande, entalhada em pedra preta e ouro dourado, além de belos rubis vermelhos. A seus pés, caído, estava um veado branco, com duas cabeças. 

Ele se virou quando ouviu minha chegada, pesadamente balançando e rindo. Vi que ele devorava o coração do veado, e havia arrancado um dos olhos de cada cabeça do animal. Em seu lugar estavam os olhos do rei, e no lugar dos olhos do rei, haviam dois olhos de veado, negros e fixos. "Vê!" gritou ele ao pressentir minha chegada, "Vê! Pois é quse chegada a hora! Vê como caiu em destruição o reino dos homens e é chegada a hora da deserção. Sangue há de ser derramado ao consertar as coisas. Vê!"

Enquanto ele ria e gargalhava, seus olhos sangravam, um filete enegrecido já endurecendo em suas rugas. A boca se abriu demasiadamente, enquanto ele tentava engolir as cabeças do pobre animal, que se agitava, de algum modo ainda vivo. 

Mas, no momento em que ele havia posto as galhadas na boca, que ainda se mantinha aberta em rito sinistro, as os chifres cresceram subitamente, empalando o rei e crescendo através da sua nuca, testa e olhos enquanto ele se retorcia, gritava e chiava, cada vez mais lentamente, até se imobilizar. 

imediatamente, plantas cresceram desordenadamente dele, tomando o rei de dentro pra fora, e se expandindo, e se expandindo ate que o salão estava coberto de luxuriantes flores roxas, e enormes rosas negras, além de samambaias e hera.

Nesse momento reencontrei o controle sobre minhas pernas, e corri. 

No alto de uma escada velha como o tempo, me esperava o Senhor do castelo. Enquanto subia, ouvia de longe lamentos e pedidos, choros e risos. Junto de cada degrau haviam um quadro. Alguns mostravam colheitas, rios, cidades. Nascimentos, aniversários, caçadas. Riso, música e amor. Casais entrelaçados em sexo, o amor de amigos, o amor de pai para filho, de mães, de tios, de animais e plantas.

Então, subitamente os tons mudaram. Guerras, massacres, torturas, dor. Explosões, morte, fome. Seres angelicais emergindo e adorando deuses das sombras. Coisas inumanas com olhos e pernas se alimentando em um grande banquete sangrento. Aberrações grunhindo e grasnando seus antigos feitiços e descarregando a ira do inferno no ser humano e suas realizações. Seres cheios de membros emergindo das águas, coisas rastejantes saindo do escuro.

Deuses velhos, enrugados, podres e amputados comendo carne podre.

Quando não aguentava mais, subitamente estava de frente a uma porta, que vibrava levemente. 

Não a descrevo, pois não me lembro. O que se passou depois disso obliterou o que já houve de compreensivel em minha alma. 

Abri a porta, e com um rosnado fui puxado para dentro. A coisa que me aguardava lá era diferente. Não a ouvia, exceto em minha mente, exceto os ruídos de sucção molhados que ela fazia ocasionalmente, além da abominável respiração, resfolegada.

Quanto á sua aparencia, era toda olhos e membros flácidos, tentáculos se misturavam com membros humanos retorcidos, membros animais amorfos e tecido podre. Os olhos, valha-me Deus, estavam por toda parte. 

Olhos humanos, olhos de cabra, olhos de peixe, de gato e de coisas que nunca viram piscavam de volta e me encaravam ávidos por compreensão. Tentei correr, e os olhos se espalharam pelas paredes, e pelo chão, e por mim, dentro e fora de mim, olhando, piscando, vendo, VENDO, dentro de mim.

Fui submetido e subjulgado pela Coisa e arauteei sua glória. Vivi em seus mundos e experienciei sua criação, vivi anos e eras sem conta, em incontáveis imperios. Agora, cansado, não quero mais viver, sozinho por esta terra de horrores. 

A Coisa me prometeu que só mais um trabalho, e estou livre dessa prisão. Se esta missiva chegou a ti, leitor, cuidado.

Os olhos Dele estão á sua volta, se você está lendo isto. Não os encare. NÃO OS ENCARE.

Mas, saiba: existe um mundo onde você pode ser quem quiser. Eu estou nele, agora.

A Coisa está te vendo agora, leitor, e ela ganha poder com sua consciência estando ligada á dela. 

Cuidado.

Sinto muito. Não era para ser assim. 

Enkidu.



Historia feita pelo João Victor, meu confidente e alma gêmea